quarta-feira, 8 de julho de 2009

Revolução cubana, 50

O aniversário da ascensão de Fidel Castro ao poder traz a oportunidade de discutir os rumos do socialismo e dos capitalismo e as diferenças entre esquerda e direita


Ana Rita Martins (ana.martins@abril.com.br)

HASTA LA VICTORIA Um grupo
guerrilheiro liderado por Fidel Castro
(à esq.) e Che Guevara depôs o governo
em 1959. Foto: AFP


Poucos assuntos são tão polêmicos e complexos de abordar em sala quanto a Revolução Cubana, que acaba de completar 50 anos. Tratado segundo diferentes visões de mundo pela imprensa, o tema pode deixar a garotada repleta de dúvidas, que os livros didáticos não costumam ajudar muito a resolver. Se já existe economia de mercado na ilha, por que Cuba ainda é tratada como um país socialista? Seu governo pode ser considerado de esquerda pelos padrões de hoje? Os avanços nas áreas sociais compensam a falta de liberdade e a pobreza?

Você pode encarar o saudável desafio de responder a todas essas questões apoiado em sólidos conhecimentos. Para isso, é preciso apresentar à turma duas oposições clássicas do terreno político: esquerda x direita e socialismo x capitalismo. O ponto fundamental é que os quatro termos sejam analisados como conceitos históricos, cujo significado é continuamente revisto para dar conta das transformações do mundo ou do aparecimento de novas interpretações.

Um caminho é começar examinando a realidade cubana antes da revolução. Em 1959, o país tinha uma das maiores rendas per capita do Caribe, mas a estatística escondia uma brutal desigualdade. Enquanto alguns poucos se beneficiavam da exportação de açúcar, a maioria da população vivia na penúria, sem acesso a serviços públicos e enfrentando altas taxas de desemprego.

A presença dos Estados Unidos, país que em 1888 ajudou a ilha a se livrar de quatro séculos de colonização espanhola (leia
Fatos que marcaram uma ilha), era ostensiva: empresários americanos controlavam a economia, dominando 75% das terras agricultáveis. Sob os olhos complacentes do ditador Fulgencio Batista, a capital, Havana, virou um paraíso de cassinos e bordéis, que atraíram milhares de estrangeiros especialmente entre 1920 e 1933, período em que a venda e o consumo de álcool foram proibidos nos EUA.


Fatos que marcaram uma ilha

1888 Com a ajuda dos Estados Unidos, o país consegue a independência da Espanha. Mas os americanos cobram um preço alto: o direito de intervir nos assuntos internos.

1953 O jovem Fidel Castro e mais 165 homens tentam tomar os quartéis cubanos para depor o ditador Fulgencio Batista. Acaba preso por dois anos. Depois, exila-se no México.

1956 Fidel e outros 81 exilados, incluindo o argentino Ernesto “Che” Guevara, retornam a Cuba e se estabelecem na região de Sierra Maestra, iniciando uma guerrilha.

1959 A guerrilha de Fidel, Raúl Castro e Che Guevara derrota as forças de Batista e toma Havana, fuzilando ex-membros do governo. Acuado, o ditador foge para o exílio.

1960 Cuba passa a fornecer açúcar à União Soviética em troca de petróleo a preços subsidiados. Essa transação é fundamental para o investimento em Educação e saúde.

1961 Exilados cubanos treinados pelos EUA planejam derrubar Fidel, na tentativa de invasão da baía dos Porcos. Com o apoio da URSS, os revolucionários vencem.

1962 Em resposta à instalação de mísseis soviéticos na ilha, americanos impõem um bloqueio a Cuba e instalam mísseis na Turquia, quase gerando uma guerra nuclear.

1991 Com a dissolução da União Soviética, Cuba perde seu principal parceiro comercial e afunda numa crise econômica, com constantes blecautes e falta de alimentos.

2008 Fidel Castro renuncia à presidência. Seu irmão, Raúl Castro, assume o poder e anuncia reformas liberalizantes, abrindo a economia do país.

2009 Barack Obama, novo presidente americano, se diz disposto a conversar com Cuba e sinaliza com o fim do bloqueio econômico se houver democracia.


Na luta pela igualdade, reformas políticas polêmicas

BEM PARA QUEM?
A propaganda exalta o governo socialista,
mas a população não é livre para opinar.
Foto: AFP



Foi nesse cenário de terra arrasada que um grupo de guerrilheiros liderados por Che Guevara, Fidel Castro e seu irmão Raúl tomou o poder, em 1º de janeiro de 1959. De cara, centenas de simpatizantes de Batista foram julgados por abuso dos direitos humanos e crimes de guerra. Muitos foram fuzilados. Outros, sentenciados à prisão perpétua.

A ascensão dos guerrilheiros veio acompanhada de ambiciosas reformas políticas, que incluíram melhoria e ampliação de serviços públicos, especialmente de saúde e Educação (que passaram a ser gratuitos para todos), reforma agrária (com a nacionalização das terras e de empresas privadas que estavam em mãos americanas) e a planificação da economia (salários, metas de produção e empregos passaram a ser controlados pelo governo central). Consolidando uma aproximação com a União Soviética (URSS), de quem Cuba recebia petróleo e alimentos em troca de açúcar, Fidel declarou num discurso, em maio de 1961, que seu regime era socialista.

O termo define um sistema socioeconômico em que o Estado é dono de todos os serviços e atividades produtivas de um país. Seu objetivo principal é garantir a igualdade, fazendo com que a riqueza e as oportunidades sejam distribuídas para todos os cidadãos. Para o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), o socialismo era visto como um estágio transitório, um caminho que transportaria uma sociedade do capitalismo ao comunismo, um sistema sem classes nem governo.

O avanço do socialismo por diversos países – nas décadas de 1950 e 60, um terço da população mundial era governada por esse regime – redefiniu outro conceito clássico da política, o de esquerda. Originário da Revolução Francesa (1789-1799), quando designava a posição que os deputados radicais ocupavam no plenário da Assembleia Constituinte, o termo passou a ser sinônimo de socialismo e comunismo. Até hoje, o conceito mais aceito é o de filósofos como o italiano Norberto Bobbio (1909-2004), que coloca a defesa da igualdade como o critério que separa esquerda e direita.




Fim da URSS trouxe crise à ilha e questionou: o que é esquerda?

PARA CUBANO VER Na capital Havana,
resorts e hotéis de luxo convivem com
moradias em estado precário.
Foto: Getty Images / Steen Larsen


Atenção, porém, para não cair no maniqueísmo: dizer que a direita é inigualitária não significa dizer que ela é má. Em sua obra, Bobbio diz que os direitistas consideram que as desigualdades são úteis porque melhoram a sociedade (por meio da meritocracia, os melhores e mais bem preparados ganham mais, o que os incentiva a evoluir). Eles também argumentam que, sempre que se tenta obter a igualdade, sufoca-se a liberdade, o valor principal para os direitistas. Não é à toa que o capitalismo, sistema socioeconômico mais identificado com a direita, tem como bases teóricas uma série de liberdades – de abrir empresas, de escolher sócio, de decidir seu patrão etc.

Conforme a História seguiu seu curso, o significado dos termos foi se alterando. As práticas autoritárias dos governos socialistas, por exemplo, fizeram com que o conceito fosse associado ao totalitarismo e ao desrespeito aos direitos humanos. Por outro lado, a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a dissolução da URSS, em 1991, abalaram a esquerda. Sua “morte” foi decretada em 1992 pelo cientista político Francis Fukuyama, argumentando que todas as alternativas políticas de esquerda haviam sido derrotadas pelo capitalismo.

Se existe alguma certeza entre os especialistas é que a implosão dos regimes socialistas serviu para descolar a associação automática entre socialismo e esquerda e entre capitalismo e direita. “Percebemos que não houve apenas a esquerda comunista, houve também, e há ainda, uma esquerda no interior do regime capitalista”, escreveu Norberto Bobbio, para quem a igualdade continua sendo o norte que separa as duas ideologias. Outros pesquisadores, porém, apontam que os movimentos de esquerda atuais se abrigam sob um guarda-chuva mais amplo de ideologias, que incluem o combate ao autoritarismo e a defesa da nãoviolência. Mas isso está longe de ser um consenso. Movimentos antiglobalização, por exemplo, rejeitam essa postura, argumentando que os protestos pacíficos não conseguiram mudar nada.

Por fim, para estudiosos como o sociológo Anthony Giddens, simplesmente não faz sentido seguir usando esses conceitos, pois eles não dão mais conta de explicar o cenário político do século 21. “Presenciei esse embaralhamento de conceitos em 1989, quando estive na União Soviética para estudar a perestróica, a abertura econômica e financeira do país. Na época, os comunistas ortodoxos, que não queriam mudanças, eram chamados de direitistas, enquanto os que defendiam transformações para a economia de mercado eram considerados esquerdistas. Eu esperava o contrário”, diz Ângelo Segrillo, historiador da Universidade de São Paulo e pesquisador do Instituto Pushkin, de Moscou, na Rússia.



Hoje, o socialismo em Cuba dá espaço para o livre mercado

E Cuba com isso? Pelas definições atuais, é controverso encarar seu governo como “de esquerda” – isso se considerarmos que o conceito ainda é válido. Afinal, a revolução produziu uma casta de funcionários públicos privilegiados (o que fere o critério de igualdade), segue aplicando a pena de morte (o que atinge o princípio da não-violência) e bloqueia a livre manifestação de opositores (o que impede o combate ao autoritarismo).

O socialismo, por sua vez, também não é mais o mesmo. A mudança mais inf luente vem da China e atende pelo nome de “socialismo de mercado”, caracterizado por uma abertura para a livre iniciativa e a concorrência em algumas áreas da economia, enquanto o governo continua controlando com mão forte o poder político. Cuba tem seguido a mesma tendência. Algumas medidas do atual presidente Raúl Castro sinalizam concessões ao capitalismo: o direito à propriedade de imóveis, a permissão do uso de hotéis e o acesso a bens de consumo.

Também é inegável que 50 anos de socialismo produziram avanços. Hoje, a ilha ostenta índices sociais dignos de países desenvolvidos. A taxa de analfabetismo é de apenas 0,2% (a segunda melhor do mundo), a mortalidade infantil é a menor das Américas e todos têm casa e comida garantidos pelo governo. Em compensação, a alimentação é racionada, faltam produtos básicos e a ilha sofre com apagões de energia – para os defensores do regime, a penúria é causada pelo bloqueio imposto pelos Estados Unidos, que trava as transações comerciais de Cuba. Apresentar relatos para levar a turma a refletir se as conquistas compensam as privações econômicas e as restrições à liberdade de expressão é uma ótima forma aprofundar o debate.




Fonte: Revista Nova Escola



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